segunda-feira, 7 de junho de 2010

Relíquias da cozinha medieval

Reproduzido daqui:

Caldo gorduroso, esturjão empanado, molho para pombinhos no espeto e até gato assado são algumas das 203 receitas, fora outros 26 ensinamentos, de um dos livros raros da pesada cozinha medieval. Foi publicado há aproximadamente 500 anos e se intitula Libre del Coch. A Biblioteca Nacional da Catalunha, em Barcelona, possui um exemplar de 1520. Escrito em catalão, é a mais antiga edição conhecida. Mas há informações sobre uma anterior, na mesma língua, publicada em 1477, que se extraviou.

A primeira edição em espanhol apareceu em 1525, na cidade de Toledo. Néstor Luján, no livro Historia de la Gastronomia (Ediciones Folio, Barcelona, 1977), concluiu que a relíquia efetivamente é do século 15, ou seja, saiu muitos anos antes do exemplar que está guardado na Biblioteca da Catalunha. Uma novidade é que a obra acaba de ser traduzida no Brasil, com o título de Livro do Cozinheiro - Manual de Receitas Medievais (Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência "Raimundo Lúlio", São Paulo, 2010).

Até hoje se questiona quem escreveu o Libre del Coch. A edição de 1520 disse ter sido "mestre Robert"; a de 1525 o chama de "Ruberto de Nola". A seguir, virou Roberto de Nola. Foi identificado como "cozinheiro do sereníssimo senhor Fernando, rei de Nápoles". Na época, boa parte do sul da Itália estava sob domínio espanhol. O soberano para o qual o cozinheiro trabalhava era Fernando I, rei de Nápoles, que governou a região de 1458 a 1494. Uma prova de que as receitas do Libre del Coch seriam do final da Idade Média é o fato de não levarem nenhum dos ingredientes que aportaram na Europa depois de 1492, com a descoberta da América (como tomate, batata, milho, chocolate etc.).

Outra dúvida: onde nasceu Roberto de Nola? Para alguns, foi na comuna italiana de Nola, perto de Nápoles, na qual morreu, em 14 d. C., o imperador Augusto; outros o dizem natural de Anoia ou Sant Sadurní d’Anoia, na Província de Barcelona. Mas o jornalista andaluz Dionisio Pérez, que assinava textos sobre gastronomia com o pseudônimo de Post-Thebussem, levantou uma terceira hipótese. Na introdução da edição de 1929 do Libre del Coch, rebatizada de Libro de Guisados de Ruperto de Nola, ele afirmou que o autor da obra jamais existiu.

Não passaria de invenção dos primeiros editores. Bastou dizer isso para receber críticas. As mais duras vieram de Néstor Luján. Ele acusou Dionisio Pérez de falta de rigor histórico, até porque, em outro trabalho, assegurou que os franceses "roubaram" molhos do seu país, como a maionese, sabidamente de origem incerta; e atribuíram aos seus cozinheiros criações "inequivocamente espanholas", como a massa folhada, já conhecida no Império Bizantino, e o foie gras, preparado desde o Antigo Egito.

O Libre del Coch é, na verdade, uma preciosa coleção de pratos medievais oriundos de algumas regiões mediterrâneas. Veronika Leimgruber, conhecida especialista na obra, identificou três receitas catalãs (cogumelos à catalã, broscato à catalã e garbies à catalã); três italianas (sopas à lombarda, torta genovesa e boa xinxenela à Veneza); duas francesas (molho francês e figos à francesa); e duas mouras (berinjela à moda moura e abóbora à moda moura). Curiosamente, não encontrou especialidades castelhanas, ou seja, inventadas na região de Castela e, por extensão, nas adjacências.

Faltou explicar a receita do gato assado, que Roberto de Nola denomina "quitute" e cuja menção pode ter intrigado o leitor. Sim, na Idade Média a carne do felídeo doméstico era considerada iguaria. Roberto de Nola recomenda abater o animal e descartar a cabeça "para que ninguém jamais a coma, porque se o fizer poderá perder o juízo". A seguir, manda tirar a pele do gato, extrair as vísceras e limpar bem. Feito isso, envolve-se o corpo em um tecido de linho e se enterra no quintal. Deixa-se ali por um dia e uma noite. Então, desenterra-se, enfia-se no espeto e se leva ao fogo para assar, untando-se continuamente com azeite e alho. Quando alcançar o ponto, "trincha-se como se fosse coelho" e se coloca em uma travessa. Serve-se com molho claro de azeite e alho. "Depois, é comê-lo e confirmar a excelência do prato", garante Roberto de Nola. Bom apetite para quem hoje não sentir repulsa de assar e comer gato!

Nenhum comentário:

Postar um comentário